Beyond Solid Ground
Marta Pinto Machado
Marta Pinto Machado não se deixará morrer
Djaimilia Pereira de Almeida
Prédios sem vida, a preto e branco, e uma linha de ciprestes. Estaremos nas imediações de um cemitério? Vimos da terra e à terra tornamos. Mas o solo é dinâmico. Morada final, mas também ninho, também vida. É aquilo que as árvores evocam, habituados que estamos a encontrá-las junto à última morada. Serão casas sem vida, onde se vive como quem morre? Um bairro e janelas em vez de jazigos? Em vez de estendais e da roupa lavada a secar ao vento, bordados pendendo de caixões? As casas nesta série são cheias de vida, mas algures ao redor, casas na margem do lugar onde a cidade pulsa. Os lugares onde moramos estão repletos delas, avistamo-las assim que nos afastamos do coração, onde já não vive ninguém. Quer Marta Pinto Machado mostrar que os nossos bairros se parecem com cemitérios? O que viu ela na lateral do prédio e no desenho das árvores que sombreiam os mortos? Talvez queira mostrar-nos, penso, ao ver as imagens ganharem cor e duas mulheres emergirem da penumbra, que ali, onde nos deixaram para morrer, se vive a cores.
Lado a lado, as mulheres dançam e olham-se. Quanto mais colorido é o traje, mais a sua vibração é tangente ao solo, como na imagem de uma das raparigas, deitada no chão, demasiado colorida para ter morrido ainda agora. A outra mulher, em vestido branco, que lhe revela uma cicatriz no peito, fala com os braços, quase a ouvimos, pende para um lado, e depois para o outro, convida-nos a escutá-la e à dança.
Que cicatriz será aquela, sobre a mama, numa tonalidade rosada, que incita a nossa curiosidade precisamente porque o vestido branco não a esconde — e Marta Pinto Machado escolheu mostrá-la? A mancha entrevista no peito da mulher de branco é o coração da série, ou a ele somos conduzidos. A cicatriz diz-nos: passaram-se muitas coisas comigo antes desta dança. Tens de não saber nada para saberes um dia tudo.
Talvez vivam ali, sejam amigas, irmãs. Não espantaria se habitassem o bairro suburbano que nos foi mostrado a preto-e-branco. Nada há nelas de fantasmático, como não há nesta série. Talvez o seu tema seja a imposição da vida sobre a morte, a recusa de perecer, a vitalidade da nossa continuação, quando tudo em redor nos pedia o contrário. As duas mulheres dão as mãos. Vibra entre elas uma corrente eléctrica. Lugar nenhum as deixará morrer.
Depois, olho de novo. Não há mancha nenhuma: é o sutiã da mulher de cabelo longo que se deixa ver sob o vestido. O olhar traiu-me e inventou um segredo, ou foi Marta Pinto Machado que o inventou (para mim). Marta Pinto Machado é uma artista de quem se espera segredos. Olha e dá a ver com uma tal indiferença ao estado da arte e ao que se convencionou ser a convenção para uma artista negra da sua geração, que mantém a coragem e a força de ser apenas ela mesma. Diz e revela os outros sem chamar atenção sobre si própria, mas porque está interessada nos outros, o que transparece no modo como os olha e os capta. Não se serve de ninguém. Serve a sua visão e a alegria de fazer o que faz. É por tudo isto um caso praticamente único entre os artistas que se ocupam hoje, em Portugal, dos espaços e das histórias que vemos nesta série. Marta Pinto Machado não se deixará morrer.
Obrigada!
local
→ Casa dos Crivos (Braga)
horário
→ Terça a Sábado: 10h – 13h / 15h – 18h30
→ Domingo e Segunda: Encerrado
Marta Pinto Machado
Marta Machado é portuguesa-caboverdiana. Vive e trabalha em Braga. É mestre em Fotografia pela Escola das Artes da Universidade Católica do Porto e arquitecta formada na Universidade do Minho. O seu trabalho fotográfico analisa as ambiguidades da História e a sua relação com as narrativas ditas oficiais do mundo ocidental, centrando-se nas temáticas do colonialismo, identidade e território. O seu trabalho fotográfico analisa as ambiguidades da História e a sua relação com as narrativas ditas oficiais do mundo ocidental, centrando-se nas temáticas do colonialismo, identidade e território. Recentemente, tem desenvolvido Nos Txon, uma série que através de um contexto autobiográfico explora, entre a autoria e o arquivo, a imagem fotográfica como ferramenta de significação. No campo académico, publicou os artigos “Memória e as possibilidades da narrativa no discurso pós-colonial” e “O Silêncio da Terra: Narrativa, Arquivo e História” nas revistas com arbitragem científica, respetivamente “Interact: Revista Online de Arte, Cultura e Tecnologia” e “Aniki: Revista Portuguesa da Imagem em Movimento”. Ainda referir que a tese de mestrado em Fotografia “Nos Txon: as Fotografias, a Memória e as Possibilidades de uma Narrativa no Discurso Pós-Colonial”, está atualmente em processo de edição para publicação em livro pela editora especializada em fotografia Pierrot Le Fou. Integra ainda, enquanto investigadora, o projeto “Traces as Research Agenda for Climate Change, Technology Studies, and Social Justice” da instituição St. Andrew’s University. É membro da UNA - União Negra das Artes. Co-programou com Eduardo Brito e João Rosmaninho, o ciclo de conversas e cinema "De que falamos quando falamos de racismo", entre Outubro de 2020 e junho de 2021 no GNRation em Braga. O seu trabalho tem sido referenciado em diversos jornais de referência por académicos como Filipa Lowndes Vicente, no artigo do Jornal Público intitulado “Mulheres negras: a banalização dos corpos colonizados” publicado a 29 de agosto de 2021, e por Djaimilia Pereira de Almeida intitulado “Nos Txon” no jornal Expresso publicado a 17 de dezembro de 2021.
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