ilhéus
Moira Forjaz
Uma mulher, o olhar profundo pela maquiagem caricata ressaltando o branco do pó de m’siro no rosto, está de pé encostada a uma parede mal caiada. Parece olhar para o espelho partido a meio - quase uma meia-lua - mas olha direito para a objetiva enquanto controla com gesto gracioso o lenço que lhe envolve a cabeça. As unhas pintadas, as joias – brincos, colares e anel em filigrana indo-portuguesa –, o lenço, o quimão típico da tradição macúa, de cores garridas que contrastam com o cinzento da parede e o azul desbotado de uma porta de madeira, sobressaem de tal maneira que parece uma foto em 3D. É Janina Momade, a capa de Ilhéus, o último livro de Moira Forjaz sobre a Ilha de Moçambique, cujos retratos são protagonistas desta exposição. Juntamente com Janina estão os outros Ilhéus “colocados” ao longo das ruelas, nas suas casas, nos degraus, nas esteiras da Ilha de Moçambique banhada, rodeada, lambida, alimentada, amada, por vezes mal-amada, pelo Oceano Índico, aquele mar que está por “detrás de tantos nomes e tantos cruzamentos de tanta diversidade” (João Paulo Borges Coelho). Os protagonistas são ilhéus idosos que deixaram entrar a fotógrafa na sua intimidade, contando as suas vidas na primeira pessoa. Provavelmente foi a primeira vez que alguém lhe pediu para falar de si, dos próprios sonhos, da vida que levaram e daquela que queriam ter levado. Das suas frustrações, das deceções e das suas satisfações. Da sua vida. (...) Ilhéus é um projeto sobre a vida, sobre o facto que tudo está dentro de um único grande céu e todos têm direito a ter um nome. Não há nada de mais importante do que o nosso nome: é só com ele que existimos. Muitos deles não têm documentos, extraviados pelos ciclones, perdidos nas andanças entre a Ilha e o continente, pobreza e miséria, ilusão e desvaneio da esperança por outro futuro. Moira Forjaz conhece a Ilha desde há muito tempo. Foi logo a seguir à independência de Moçambique que fez aí a sua primeira viagem. Fez um livro, Muipiti, que deu a volta ao mundo. Muito mundo passou desde então até que em 2012 ela decidiu fixar a sua residência mesmo na Ilha de Moçambique. Com 70 anos de idade quis ser ilhoa. Faz amizades com os ilhéus, nesta ilha onde as cores vivas se uniformizam na sépia acastanhada da pedra e da areia. Moira consegue realçar essas cores através das pessoas, dos ilhéus que lhes contam as suas histórias. Não está à procura de uma bela fotografia, não está presa à construção mental que induz a observar o sujeito de um ponto de vista principalmente estético. A intenção de Moira é, ao invés, capturar o espírito do sujeito. E o espírito é a própria vida e a sua dignidade. Por isso, as arquiteturas, os muros, os degraus, as ruas e os corpos humanos são todos sujeitos que contêm um hálito de espiritualidade que podemos reconduzir a uma sacralidade arcaica. A sua é uma fotografia que revela como a complexa beleza da vida pode transmutar-se em decadência e de como esta continua a ser “bela”; de quanta beleza é feita a complexidade, “no setim que fica por baixo do m’siro” Alexandre Lobato).(…) Compreendemos a empatia que guiou a mão de Moira, muito longe da rapidez com que tanta fotografia digital, feita para ser consumida, se tem afirmado nos tempos recentes. Nestes 44 retratos, a cor é usada como aspiração absoluta, como ética: nós que olhamos somos re-olhados pela matéria inerte de onde sobressai a luz da cor que atinge os nossos olhos. (...) Estes Ilhéus são os últimos testemunhos desse tempo.
local
→ Mira Forum (Porto)
horário
→ Terça a Sábado: 10h00 – 18h00
→ Domingos e Segundas: Encerrado
Moira forjaz
Nem vinte anos tinha quando Moira Mathison (1942) quis sair do estreito enclave branco em Bulawayo, na ex-Rodésia, para abrir as asas e estudar arte. Eram os anos 60 e mudou-se para Joanesburgo. Com o dinheiro da venda de um casaco de pele - prenda do pai, Moira comprou a sua primeira máquina fotográfica, o talismã que a tem acompanhado ao longo de uma carreira marcada pela história de muitas revoluções. Os anos 60 foram anos de luta. Luta contra o colonialismo. Foram anos de engajamento total e grandes (e)utopias. E os primeiros encontros em Joanesburgo marcaram para sempre a vida de Moira. Hillary Hamburger, Joe Slovo, Ruth First, e David Goldblatt, o fotógrafo conhecido pelas fotos durante o apartheid. As detenções e o subsequente julgamento da liderança do ANC mudaram a história da África do Sul, tendo repercussões na história de Moira. Foi sobretudo em Moçambique - onde encontrou o seu futuro marido, o arquitecto José Forjaz - que Moira desenvolveu a sua habilidade, tornando-se uma das fotógrafas oficiais do Presidente Samora Machel. O engajamento político e social passou pela fotografia e pelo cinema, registando gentes, lutas, música, resgatando a vida com a sua miséria e a sua nobreza. A Samora Machel e a Ruth First (com quem colaborou em vários trabalhos de campo), Moira dedicou o livro fotográfico Moçambique de 1975 a 1985, (2015), a preto e branco, onde se cruzam vários aspectos da vida dos primeiros anos do novo país, numa profunda sinestesia entre fotos e textos. A beleza como dínamo para a justiça social, o comprometimento, o trabalho, são as marcas mais profundas da personalidade de Moira que, além de fotógrafa, foi cineasta (com Jean-Luc Godard), galerista (em Lisboa, nos anos 90), depois directora de festivais de música em Portugal e em Moçambique. Em 2012, Moira decidiu ir viver para a Ilha de Moçambique. A Ilha é o seu grande amor, que conheceu em 1976. Às suas gentes dedicou o seu primeiro livro fotográfico Muipiti, a branco e preto, editado em 1983, onde se percebe a cumplicidade entre a beleza dos cenários e a vida da população plural, além dos testemunhos patrimoniais da primeira capital moçambicana. Uma selecção das provas da época e outros originais foram expostas, anos mais tarde em Roma, na Livraria “Paesi Nuovi”, famosa por ter sido o local do encontro, em 1970, de três líderes africanos, Amilcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos, antes da audiência com o Papa Paulo VI que lhes deu a encíclica Populorum Progressio. Em 2019, a bibliografia de Moira Forjaz enriquece-se com o livro Ilhéus, com fotos a cores, um desenvolvimento natural de Muipiti, focando-se nos ilhéus idosos. São imagens em que o rosto e o corpo se sobrepõem à História: ilhéus que a deixaram entrar na sua intimidade, contando as suas vidas na primeira pessoa. Algumas das fotos de Muipiti, juntamente com outras que constam de Ilhéus, foram expostas em Veneza, no Pavilhão de Moçambique, em 2019.O percurso fotográfico de Moira é uma caminhada constante para encontrar o significado mais recôndito da existência humana. Cada fotografia é como se fosse a sua pegada profunda e nítida, retratando seres numa união indissolúvel com a sua própria alma. E foi na Ilha que Moira deu um passo à frente com o digital: “Só uma Nikon, uma lente de 50, luz natural e empatia. Na Ilha, voltei a ser fotógrafa”.