Emergentes Portfolio Reviews 2023
20 set – 03 nov 2024
- Exposições Coletivas
- Fim-de-semana Inaugural
- Emergentes 2023
- Braga
As exposições do vencedor dos Emergentes 2023 e do Coletivo de Finalistas foram realizadas com curadoria de Vítor Nieves.
Exposição do Vencedor Emergentes 2023
HOLYDAY
D. M. Terblanche
Curador: Vítor Nieves.
20.09 – 03.11.2024
SOMA — Plataforma Cultural
Exposições dos Finalistas Emergentes 2023
Não estar nem aí
Elisa Mariotti, Francesca Faulin e Katerina Kouzmitcheva
Curador: Vítor Nieves
20.09 – 03.11.2024
Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, Braga
Esta exposição reúne as obras de Elisa Mariotti, Francesca Faulin e Katerina Kouzmitcheva, três das artistas finalistas do Emergentes 2023, que, através de abordagens distintas, investigam temas que a sociedade moderna tende a ignorar ou evitar. O título da exposição, inspirado na obra de Kouzmitcheva, remete-nos para uma atitude de indiferença ou distanciamento face a questões que, embora presentes no quotidiano, são frequentemente evitadas ou silenciadas. Esta postura de “não estar nem aí” funciona como uma metáfora que convida à reflexão sobre a forma como lidamos — ou, mais precisamente, como não lidamos — com problemas que afetam profundamente a nossa sociedade, tais como a doença mental e a toxicodependência.
A decisão curatorial de reunir estes três projetos, à primeira vista tão distintos, constitui uma chamada de atenção, na medida em que estabelece uma ligação entre preocupações que, apesar de diferentes na sua manifestação, partilham um denominador comum: a recusa ou a fuga face a realidades incómodas. Este diálogo entre as obras evidencia como a sociedade frequentemente prefere ignorar ou evitar confrontar questões que desafiam o seu conforto e estabilidade. A capacidade de afastar o olhar do sofrimento dos outros é uma das mais antigas estratégias humanas para evitar o desconforto moral (Susan Sontag, Regarding the Pain of Others, 2003). Não estar nem aí obriga a encarar de frente aquilo de que normalmente nos esquivamos, expondo as diversas formas de evitamento que permeiam o nosso dia a dia e incentivando uma reflexão sobre essas dinâmicas.
Na sociedade contemporânea, como descrito por Zygmunt Bauman em Modernidade Líquida (2000), vivemos numa era caracterizada pela fluidez e pela volatilidade, onde as responsabilidades e os compromissos se tornam cada vez mais indefinidos. Em vez de enfrentarmos os problemas de forma coletiva, estes são frequentemente relegados para outros, ou, em muitos casos, simplesmente ignorados. Bauman observa que, nesta “modernidade líquida”, as relações, instituições e identidades carecem de estabilidade, refletindo uma tendência crescente para evitar confrontos com as realidades mais desafiadoras e desconfortáveis da sociedade atual.
Michel Foucault, em Surveiller et Punir: Naissance de la Prison (1975), traduzido para português como Vigiar e punir: nascimento da prisão, alerta-nos para a forma como as sociedades modernas desenvolvem mecanismos de disciplina e segregação para lidar com aqueles que não se conformam com as normas estabelecidas. Em vez de confrontarem as realidades subjacentes a comportamentos desviantes, as sociedades tendem a afastar esses indivíduos do olhar público, confinando-os a espaços onde a sua existência é, na prática, invisibilizada. Foucault argumenta que este processo de disciplinarização não só marginaliza os indivíduos, mas também reforça as estruturas de poder que perpetuam essas exclusões.
Complementando essa perspetiva, Judith Butler, critica as normas sociais que impõem categorias rígidas de identidade e comportamento, muitas vezes punindo aqueles que não se encaixam nessas expectativas. Butler observa que “as normas regulatórias que nos definem também nos desumanizam e tornam impossível a plena realização do potencial humano” (Undoing Gender, 2004), destacando como a sociedade não apenas evita lidar com a diferença, mas também exerce violência simbólica sobre aqueles que ousam desafiar as normas vigentes.
A combinação dessas abordagens sublinha como as práticas de exclusão, tanto em termos de disciplinarização quanto de imposição de normas sociais, continuam a ser ferramentas poderosas para evitar confrontar as realidades que nos perturbam. Essas estratégias de segregação e conformismo, ao invés de promoverem uma sociedade mais justa e inclusiva, perpetuam a marginalização e o silenciamento de vozes dissidentes.
Não estar nem aí revela diferentes facetas deste distanciamento que caracteriza a modernidade líquida. Expondo as realidades incómodas que se ignoram, a exposição também subverte as estruturas de poder que perpetuam a marginalização e o silenciamento. Parafraseando Jacques Rancière, a arte tem o poder de reconfigurar o espaço do visível, trazendo à luz aquilo que a sociedade prefere manter oculto (A Partilha do Sensível, 2000), pois a arte pode desafiar as hierarquias estabelecidas, questionando as formas tradicionais de representação e, assim, redistribuir o sensível de maneira a dar voz aos e às silenciadas.
Escolher estar aí
A Letter from Home (Uma carta de casa) é o projeto com o qual Elisa Mariotti nos oferece uma janela íntima para o mundo fechado das comunidades terapêuticas, onde a toxicodependência é abordada através de um processo rigoroso de reabilitação e reintegração. Este trabalho, resultado de uma investigação na comunidade de San Patrignano, em Itália, uma das maiores e mais conhecidas do mundo, desafia-nos a confrontar uma das realidades mais incómodas e frequentemente ignoradas da sociedade contemporânea: o ciclo vicioso da adição e o esforço contínuo para superá-la.
Mariotti força-nos a encarar de frente as realidades da toxicodependência, que tantas vezes nos fazem não estar nem aí. Ao explorar as rotinas diárias, os desafios emocionais e as relações humanas dentro da comunidade, subverte a narrativa típica de marginalização associada às pessoas toxicodependentes. Em vez disso, evidencia a complexidade de um processo que exige a superação de uma dependência física e a reconstrução de identidades fragmentadas, muitas vezes através de interações cuidadosamente mediadas e de um retorno gradual a uma vida estruturada.
Retornar ao estar
Francesca Faulin, com L’originale, l’ombra e la ripetizione (O original, a sombra e a repetição), aprofunda nas sombras de uma história familiar silenciada, oferecendo ao público uma reflexão sobre a complexidade da doença mental e a construção da identidade. Inspirada pela descoberta de um diário do seu avô, onde este documentou os últimos anos de vida do seu tio Francesco, que sofreu de esquizofrenia, Faulin explora a delicada linha entre a sanidade e a psicose, questionando os limites entre a normalidade e a doença.
Utilizando técnicas fotográficas antigas, a artista não só revive memórias do passado, mas também enfatiza a natureza fragmentada e repetitiva da experiência de quem vive com esquizofrenia. A escolha destas técnicas confere às imagens uma qualidade etérea, quase fantasmagórica, que ecoa a citação com que a artista inicia a sua obra: “À medida que a sombra cresce, cresce também a distância entre o original e a cópia.” Neste trabalho, a sombra — a esquizofrenia — distancia progressivamente o indivíduo da sua identidade original, criando múltiplas camadas de existência que se sobrepõem e se repetem, como num ciclo interminável.
Francesca Faulin, já conhecida pelos seus projetos de índole familiar, convida-nos nesta obra a confrontar a realidade da esquizofrenia, uma condição frequentemente marginalizada e incompreendida. Ao revelar este segredo familiar, a artista inverte o silêncio que muitas vezes envolve a doença mental, expondo as nuances de uma luta interna que é tanto individual quanto coletiva.
Dimensões de estar aí
Katerina Kouzmitcheva, com a obra My Hut Is On The Edge (A minha cabana está no limite), leva-nos a explorar as sutilezas do distanciamento e da indiferença através de uma investigação sobre expressões idiomáticas que, de forma subtil, refletem atitudes de desapego e desinteresse em relação ao mundo que nos rodeia. Partindo de um ditado tradicional do seu país natal, a Bielorrússia, que significa algo como “isso não me diz respeito”, Kouzmitcheva desvela como a linguagem molda não apenas a comunicação, mas também o comportamento e a responsabilidade social.
Neste trabalho, a artista interroga-se sobre a universalidade desses padrões linguísticos de distanciamento, descobrindo que, em diversas culturas, existem expressões que refletem uma vontade de evitar o confronto com a realidade, seja ela política, social ou moral. Através de uma combinação de ditados tradicionais ou expressões populares e cenários fictícios, Kouzmitcheva utiliza o humor negro para retratar a ignorância e a apatia, refletindo, em última análise, a modernidade líquida perante questões que exigem uma postura ativa e consciente.
As obras de Katerina Kouzmitcheva, além disso, desempenham um papel fundamental na arquitetura conceptual desta exposição, operando simultaneamente como enlaces e separadores entre as demais obras apresentadas. Assim, tecem uma rede de significados que, ao mesmo tempo que unifica as diferentes abordagens temáticas, sublinha as distinções que as caracterizam, atuando como pontos de interseção, onde o discurso da indiferença se articula com a complexidade dos temas abordados pelas outras artistas, criando uma coesão interpretativa que é tão orgânica quanto provocadora.
Do antropoceno: antes, ainda e amanhã
Ana Rodríguez Heinlein, Luca Rotondo e Martin Tscholl
Curador: Vítor Nieves
20.09 – 03.11.2024
Mosteiro de Tibães, Braga
O conceito de Antropoceno, enquanto marco geológico e histórico, desafia-nos a repensar a nossa relação com o ambiente e as paisagens que nos rodeiam. As transformações que lhe são inerentes não apenas moldaram fisicamente a Terra, mas também alteraram profundamente as nossas percepções do natural. As paisagens que hoje reconhecemos e valorizamos como naturais são, muitas vezes, resultado de intervenções humanas acumuladas ao longo de séculos, tornando-se testemunhas silenciosas das forças antropogénicas que as criaram e transformaram.
A exposição “Do antropoceno: antes, ainda e amanhã” propõe-se precisamente a explorar essas questões, oferecendo uma plataforma para a contemplação e para a problematização das paisagens do presente e do futuro. Os projetos de Ana Rodríguez Heinlein, Luca Rotondo e Martin Tscholl, três dos finalistas do Emergentes 2023, abordam aspectos nodais da antropização do meio, apresentando-se num tempo não linear que fusiona passado e futuro, transversalizando os conceitos de memória e futuridade, de ação humana e constructo tecnológico. A degradação e a preservação do meio ambiente são, assim, apresentadas como partes de um mesmo continuum, sublinhando a indissociável interligação entre estes processos.
Neste cenário, a ideia de preservação assume uma complexidade adicional. Preservar essas paisagens implica não apenas conservar a sua aparência ou ecossistemas, mas também refletir sobre as narrativas que elas carregam, como as de intervenção, destruição, adaptação e sobrevivência. Como sugere Bruno Latour, no seu conceito de “Zona Crítica”, o Antropoceno obriga-nos a reconhecer que estamos imersos num mundo onde a distinção entre o natural e o artificial é cada vez mais difícil de estabelecer, exigindo novas formas de pensar e agir (Latour, 2017).
Termo introduzido pelo Prémio Nobel da Química, Paul Crutzen (Geology of mankind. Nature, vol. 415), na viragem do milénio, o Antropoceno refere-se a uma nova era geológica em que a humanidade se tornou um agente de mudanças à escala planetária, especialmente desde a Revolução Industrial. Esta nova designação, que gerou debates consideráveis, reflete o impacto profundo e abrangente da atividade humana no planeta, assinalando uma ruptura sem precedentes na história geológica da Terra. No entanto, o Antropoceno não é apenas uma questão de nomenclatura ou de delimitação temporal; tem-se afirmado como um conceito central nos discursos críticos e políticos da atualidade, convocando-nos a uma reflexão urgente sobre as consequências das nossas ações no mundo natural.
Embora o conceito de Antropoceno ainda seja relativamente vago, especialmente no campo da fotografia contemporânea no nosso contexto, tem sido objeto de numerosas investigações e iniciativas em várias disciplinas. A sua abrangência e transversalidade tornam-no um tema central para repensar a nossa relação com o mundo natural e cultural, e para explorar novas formas de entender e proteger o património que deixaremos para as gerações futuras. Como observa Jason W. Moore (2016), o Antropoceno deve ser visto não apenas como uma nova era geológica, mas como um espelho que reflete as crises ecológicas, sociais e económicas que emergem das dinâmicas do capitalismo global.
Quando considerado como paisagem, o Antropoceno revela uma multiplicidade de realidades – tanto visíveis como invisíveis, tangíveis e intangíveis – que podem estar em diferentes estados de degradação ou preservação. Esta complexidade obriga-nos a reexaminar e a explorar novas perspectivas sobre a relação entre o lugar e a história, embora pareça algo já exaustivamente explorado no nosso medium, especialmente naquilo que no círculo da fotografia se convencionou chamar de “Território”, conceito amplamente esvaziado de significado pelo documentalismo (aka. fotojornalismo disfarçado de arte) que se preocupa mais com o enquadramento do que com a reflexão, com uma abordagem que se esgotou há muito tempo, antes mesmo de Crutzen formular a teoria que discutimos neste texto.
No entanto, a relevância do conceito de Antropoceno vai além desse tratamento superficial do “Território”. Mais do que isso, convida-nos a repensar os valores naturais e culturais, não como entidades separadas, mas como realidades híbridas e interconectadas, que refletem uma fusão entre o natural e o cultural. A verdadeira essência do Antropoceno reside na necessidade de reavaliar a nossa relação com o passado e o futuro. Este desafio abriu portas para um debate profundo sobre o que significa, nos dias de hoje, conservar e proteger tanto o património quanto as paisagens. Este diálogo, naturalmente, está repleto de complexidades, obstáculos e contradições que precisam ser cuidadosamente abordados.
Neste cenário, torna-se essencial refletir sobre os tipos de paisagem que se alinham com conceitos como irreversibilidade, resiliência, hibridação e a complementaridade entre a ação humana e a natureza. É igualmente crucial ponderar o que significa criar futuros alternativos e quais são as visões de futuro capazes de nos ajudar a mitigar ou a adaptar-nos às crises globais. Além disso, devemos considerar as narrativas e práticas que nos permitam compreender mais profundamente os desafios atuais. Paralelamente, é necessário explorar o espaço entre a filosofia do colapso e a transição para um paradigma que promova um futuro sustentável, identificando os sinais de novas paisagens e as ações necessárias, integrando perspectivas de diversas áreas do conhecimento.
Antes
Na sua obra Tierra sin água (Terra sem água), Ana Rodríguez Heinlein indaga num passado recente que se desdobra como uma advertência urgente para o futuro. Através de uma investigação visual e conceitual sobre a seca no sul da Península Ibérica, Heinlein documenta uma terra marcada pela ausência de água, expondo a vulnerabilidade de uma região cuja prosperidade sempre esteve intimamente ligada a este recurso vital. Como a própria artista observa, “a escassez deste recurso expõe conflitos latentes e põe à prova dependências que antes não eram questionadas”, revelando as fissuras de um sistema que insiste em explorar a água como se fosse infinita.
Heinlein questiona as consequências de práticas históricas e contemporâneas que priorizam objetivos económicos, como a agricultura intensiva e o turismo, sobre a sustentabilidade a longo prazo. Esta abordagem ecoa com o pensamento de Joan Martínez-Alier, que no seu livro The Environmentalism of the Poor: A Study of Ecological Conflicts and Valuation (2002), discute como comunidades marginalizadas são frequentemente as mais afetadas pelas crises ambientais resultantes da exploração excessiva dos recursos naturais.
Heinlein lembra-nos que o passado, com todas as suas práticas insustentáveis, não está distante; ele molda o presente e pressagia um futuro incerto. A artista convida-nos a refletir sobre o legado destas práticas, sobre a irreversibilidade das mudanças que já ocorreram, e sobre a responsabilidade de reavaliar a nossa relação com o ambiente para evitar um colapso que ameaça tanto a natureza quanto a vida humana.
Ainda
Kirka de Luca Rotondo confronta-nos com a tensão persistente entre passado e presente, explorando a complexa relação entre os seres humanos e os ursos nos Alpes. Após quase um século de caça implacável que levou a espécie à beira da extinção na região, o projeto europeu “Life Ursus” foi implementado na esperança de restaurar uma população viável de ursos. No entanto, o retorno destes animais, uma tentativa de reparar o que parecia irreversível, não trouxe apenas uma reintrodução da vida selvagem, mas também reacendeu antigos conflitos entre as comunidades locais e os ursos, que se tornaram símbolos tanto de orgulho quanto de ameaça.
Rotondo expõe as camadas de contradições e ambiguidades que marcam esta coexistência forçada. Enquanto alguns veem nos ursos o renascimento de uma herança natural que deveria ser celebrada, outros consideram-nos intrusos, alheios ao território, como se a presença humana tivesse anulado qualquer direito anterior dos ursos àquele espaço. O choque entre a vontade de proteger uma espécie emblemática e a necessidade de assegurar a segurança e os interesses das comunidades locais expõe a difícil convivência entre conservação e progresso.
Este trabalho remete-nos à reflexão sobre a nossa capacidade de realmente reparar os danos causados ao ambiente. Ao narrar os esforços e os fracassos na tentativa de reconciliar o ser humano com a natureza, Rotondo evoca uma ideia de reparação simbólica, que nos faz lembrar A Paradise Built in Hell (2009), onde Rebecca Solnit discute como os atos de correção das injustiças passadas, muitas vezes geram novas formas de conflito e resistência. “Kirka” coloca-nos no centro de um dilema moral e ecológico que ainda hoje persiste, um lembrete de que a convivência entre o ser humano e a natureza é um processo contínuo e incerto.
Amanhã
Em “Imaginary Ecologies“, Martin Tscholl projeta-nos para um futuro especulativo onde a natureza, tal como a conhecemos, é reinventada. Através de uma coleção de imagens que retratam vegetais, objetos naturais, restos de animais e outros elementos que poderíamos encontrar no ambiente, Tscholl constrói as vistas que transcenden o presente e nos desafiam a imaginar um mundo onde as fronteiras entre o natural e o artificial se esbatem. Estas ecologias imaginárias não são meras fantasias, mas sim explorações profundas das relações complexas e interdependentes que existem entre todas as formas de vida.
Tscholl convida-nos a um exercício de imaginação ativa, onde as espécies que povoam o seu trabalho parecem tanto familiares quanto estranhas, como se pertencessem a um tempo ainda por vir. Ao explorar essas interações e transformações, o artista questiona a nossa capacidade de compreender e integrar-nos num mundo para além do humano, um mundo onde novas formas de coexistência emergem da crise ecológica atual.
Donna Haraway (Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene, 2016), discute a necessidade de “ficar com o problema” e abraçar o desconhecido para criar futuros possíveis. Assim como Haraway sugere um compromisso contínuo com a construção de relações multispecíficas, Tscholl, através de “Imaginary Ecologies”, abre um espaço fotográfico para que possamos imaginar e dialogar com um futuro em que a humanidade deve repensar radicalmente o seu lugar no ecossistema global.
As veias abertas
Aaryan Sinha, Amina Kadous e Olga Sokal
Curador: Vítor Nieves
20.09 – 03.11.2024
SOMA — Plataforma Cultural, Braga
Os projetos de Aaryan Sinha, Amina Kadous e Olga Sokal, finalistas do Emergentes 2023, são reunidos nesta exposição por se alinharem perfeitamente com o tema central da presente edição dos Encontros da Imagem. Partindo das suas histórias pessoais e familiares, exploram questões que, embora profundamente enraizadas em contextos locais, ressoam com uma dimensão global. As suas obras não só revelam a persistência das cicatrizes coloniais, mas também problematizam as dinâmicas do extrativismo e do neodesenvolvimentismo, que continuam a perpetuar as desigualdades e a exploração de recursos, tanto humanos quanto naturais, em nome do progresso.
Desde o início, o processo colonial teve como objetivo central a extração de riquezas dos territórios descobertos pelo homem branco. Esta exposição traz à tona o legado deixado por séculos de exploração: um sistema de trabalho forçado e a reorganização social, económica e política das regiões ocupadas. Tudo para garantir a espoliação de recursos. Se outrora estas riquezas financiavam as guerras das monarquias europeias ou contribuíam para a acumulação primária do capitalismo emergente, hoje continuam a desempenhar um papel semelhante, alimentando as oligarquias e um sistema económico global consolidado e amplamente experimentado.
Mas o extrativismo colonial não se limitou a um único território ou período. Como recorda Eduardo Galeano na sua obra magistral As Veias Abertas da América Latina (1971) — de onde esta exposição toma emprestado o título — ao longo dos 500 anos que se seguiram à ocupação inicial, a monocultura da cana-de-açúcar, do algodão e da lã, entre outras, serviu como combustível para a expansão capitalista na Europa; tal como a exploração da borracha na Amazónia e, mais tarde, a extração de petróleo e gás por todo o continente.
Desde os tempos da colonização até aos dias de hoje, a posição económica dos países que foram ocupados permaneceu, essencialmente, inalterada: continuam a ser fontes primárias de recursos naturais que alimentam o poder económico das elites globais e sustentam o sistema económico que essas elites desenvolveram, o capitalismo. Atualmente, o extrativismo — entendido como a exploração intensiva de recursos naturais, comercializados no mercado internacional sem qualquer valor acrescentado — mantém-se central para muitas economias nacionais, contribuindo significativamente para as receitas dos Estados. Este fenómeno, que se enquadra nas teorias do “neodesenvolvimentismo” abordadas por autores como Eduardo Gudynas e Maristella Svampa, evidencia como, mesmo em países que procuraram, desde os anos 2000, implementar políticas públicas mais equitativas (como a Venezuela, o Equador e a Bolívia), a superação do modelo primário-exportador tem-se revelado uma tarefa árdua, se não impossível. Nestes contextos, continuam a emergir conflitos semelhantes, impulsionados pelas consequências sociais e ambientais que o extrativismo invariavelmente provoca.
Além disso, as estruturas económicas implantadas durante a colonização permanecem largamente intactas. Aníbal Quijano cunhou o termo “colonialidade” para descrever as relações de poder que perpetuam os padrões sociais, económicos e políticos herdados da colonização europeia, baseando-se em três pilares fundamentais: o eurocentrismo, o capitalismo e o racismo. Assim, mesmo num mundo pós-colonial, estas dinâmicas continuam a moldar as sociedades contemporâneas, perpetuando as desigualdades e os conflitos associados ao extrativismo.
A agenda colonial, no entanto, não se manifesta apenas através das dinâmicas de poder entre a Europa colonizadora e os países colonizados. As sofisticadas técnicas opressoras do neodesenvolvimentismo expandem essa agenda também dentro das próprias nações, e até em contextos locais, perpetuando as mesmas lógicas de exploração e desigualdade. Este fenómeno, descrito pela socióloga aymara-boliviana Silvia Rivera Cusicanqui como “recolonização interna”, aplica-se especialmente à implementação e expansão de projetos extrativos. Desde os anos 1980, acompanhando a ascensão do neoliberalismo a nível internacional, assistimos ao crescimento do extrativismo, que pode ser analisado através dos conceitos de colonialidade e de recolonização interna. Este modelo não apenas reproduz o eurocentrismo, as lógicas capitalistas e o racismo, mas também cria novas formas de opressão dentro dos próprios países.
Um exemplo disto em Portugal é a projeção de minas de lítio em regiões afastadas dos centros de poder, o que evidencia como estas dinâmicas de exploração também se desenrolam em contextos locais. Este fenómeno foi abordado por Silvy Crespo na sua exposição “The Land of Elephants”, apresentada no Edifício do Castelo durante os Encontros da Imagem em 2021. Crespo evidenciou como estas áreas, frequentemente distantes das grandes cidades e dos centros de decisão, são escolhidas para a extração de recursos, perpetuando uma espécie de colonialismo interno que se reflete nas disparidades regionais e na marginalização das populações locais.
Neste contexto, as obras de Aaryan Sinha, Amina Kadous e Olga Sokal emergem como vozes críticas que, ao partir das suas histórias pessoais e familiares, convidam-nos a refletir sobre as continuidades e rupturas dessas dinâmicas de poder e exploração, tanto em escala global quanto local.
Divide e vencerás
A obra de Aaryan Sinha, This Isn’t Divide and Conquer (Isto não é dividir para conquistar), posiciona-se no seio do pensamento pós-colonial, explorando um dos conflitos mais persistentes e dolorosos da história contemporânea da Índia e do Paquistão. O projeto emerge das raízes familiares de Sinha, desenvolvendo-se ao longo de uma viagem pelos cinco estados indianos que fazem fronteira com o Paquistão. Através da fotografia, o autor busca compreender como os eventos históricos, particularmente a Partição de 1947, moldaram a paisagem e a identidade em constante transformação do povo indiano.
A linha Radcliffe, traçada em apenas cinco dias por um oficial britânico, Cyril Radcliffe, sem qualquer consideração pelas complexas realidades culturais, étnicas e regionais, dividiu a Índia e o Paquistão de forma abrupta e arbitrária. Esta demarcação precipitada deu origem a uma das maiores migrações forçadas da história, deslocando 14 milhões de pessoas e resultando na morte de mais de um milhão. Esta linha imaginária não apenas separou geografias, mas rasgou o tecido social, cultural e familiar, cujas feridas permanecem abertas até hoje.
O título da obra de Sinha faz referência à estratégia colonial britânica de “dividir para conquistar”, que fomentou divisões religiosas para enfraquecer a resistência ao domínio imperial. No entanto, Sinha vai além de uma mera denúncia histórica, sugerindo que estas táticas de divisão estão longe de ser relegadas ao passado. O atual governo de direita na Índia, ao polarizar comunidades religiosas, revive de forma inquietante as mesmas dinâmicas de poder, exacerbando a fragmentação social e consolidando o seu controlo sobre uma vasta nação.
This Isn’t Divide and Conquer é uma reflexão crítica sobre a continuidade dos legados coloniais na política contemporânea. Ao revisitar a história através das memórias e experiências pessoais da sua família, Sinha desafia a narrativa oficial e convida à introspeção e ao diálogo, recordando as feridas do passado, mas também iluminando as tensões atuais, promovendo uma mensagem de unidade em tempos de profunda divisão política.
Este projeto, ao focar-se nas semelhanças em vez das diferenças, oferece uma poderosa contra-narrativa à polarização prevalente, propondo um espaço de reflexão onde as histórias individuais e coletivas se entrelaçam, na esperança de um futuro mais reconciliado e menos marcado pelas cicatrizes do passado.
Espólio clássico atualizado
O trabalho de Amina Kadous, White Gold, deambula na interseção entre as histórias pessoais e a vasta teia de dinâmicas econômicas e políticas que moldaram e continuam a moldar o Egito. O algodão egípcio, muitas vezes referido como “ouro branco”, simboliza a riqueza natural do país, mas também as complexas relações de poder que o cercam. Durante o período colonial, o extrativismo foi imposto como uma ferramenta de dominação e exploração, e, após a independência, essa lógica de controle não desapareceu; foi antes apropriada e perpetuada por oligarcas nacionais, que passaram a responder aos interesses de um capitalismo globalizado.
White Gold é uma investigação crítica sobre como o legado do colonialismo continua a manifestar-se na geopolítica contemporânea e na vida quotidiana das pessoas. A política geoeconómica não se restringe a decisões tomadas em esferas distantes; ela imiscui-se nas histórias familiares, nas memórias que passam de geração em geração e nos traumas coletivos que permanecem vivos no tecido social.
Kadous utiliza a história do algodão como uma metáfora para explorar a identidade egípcia, tanto no plano pessoal quanto no coletivo. A história da sua família, enraizada na indústria têxtil de El Mehalla Al Kobra, reflete as transformações que o Egito sofreu ao longo do tempo. A cidade, outrora uma das mais importantes na colheita e fiação do algodão, é um microcosmo das mudanças econômicas e sociais do país. Através do seu bisavô, que fundou uma fábrica têxtil em 1969, até ao seu pai, que deu continuidade a esse legado na década de 1980, Kadous constrói uma narrativa que entrelaça a sua própria identidade com a história contemporânea egípcia.
O algodão, tal como a própria Kadous, foi arrancado das suas raízes, processado, transformado e inserido numa dinâmica global que frequentemente ignora as implicações humanas e culturais dessa extração. Em White Gold, a artista questiona o que resta dessa “semente humana”, refletindo sobre o que foi perdido, o que ainda persiste e o que poderia ter sido. Através de uma combinação de arquivos familiares, objetos encontrados e memórias pessoais, tece um retrato da resiliência e da luta do povo egípcio, e da sua própria luta para encontrar um lugar num mundo em constante mudança.
Este trabalho, ao mesmo tempo íntimo e coletivo, desafia-nos a reconsiderar as narrativas pós-coloniais e a reconhecer como as práticas de exploração e controle, muitas vezes disfarçadas de desenvolvimento, continuam a influenciar e a definir identidades em contextos locais e globais.
Recolonização interna
Black Stone Burns (A pedra preta arde) de Olga Sokal é uma investigação sobre as dinâmicas pós-coloniais no contexto local que reflete o impacto da extração de carvão em comunidades ao redor do mundo. Este trabalho, que parte da história familiar e da vila natal da artista em Belchatow, na Polónia, estende-se por cinco países em três continentes, revelando como a exploração do carvão, longe de ser uma prática relegada ao passado, continua a ser uma força motriz do capitalismo global, com consequências devastadoras para as pessoas e o ambiente.
A obra de Sokal insere-se na já mencionada “recolonização interna” (Rivera Cusicanqui, 2010), uma forma de dominação que não se limita às antigas colónias, mas que se manifesta também dentro dos próprios estados-nação. Em Belchatow, onde as minas de carvão atravessaram a história da sua família e vizinhança, esta dinâmica de recolonização interna é evidente. A exploração do carvão, inicialmente uma fonte de sustento e orgulho, tornou-se um símbolo de degradação ambiental e social, deixando cicatrizes profundas na terra e na comunidade. Quando as pedras pretas são extraídas e o trabalho árduo é retirado, o que resta é mais do que terras devastadas; são comunidades fragmentadas e identidades esvaziadas.
Sokal tece narrativas visuais complexas que revelam como a extração de carvão moldou indelevelmente as vidas das pessoas que dependiam dele. Black Stone Burns questiona as políticas que sustentam e promovem a continuidade do extrativismo. No Reino Unido, os anúncios de arquivo que celebravam a era do carvão são confrontados com as estratégias de branqueamento da sua história, evidenciando como o capitalismo utiliza a comunicação visual para perpetuar a sua hegemonia. Nas cidades mineiras dos Apalaches, nos Estados Unidos, Sokal capta a desilusão de comunidades que, outrora sustentadas pelo “sonho americano” do carvão, agora enfrentam o colapso econômico e social. Na China, a exploração em larga escala leva à degradação ambiental em proporções alarmantes, exemplificando como o neoliberalismo e o capitalismo global continuam a explorar e mercantilizar o mundo natural.
Ao interrogar a relação entre essas forças e o papel que a fotografia desempenha na sua construção e perpetuação, a autora questiona a continuidade das práticas de exploração e as formas como estas moldam a economia global e as histórias pessoais e coletivas das comunidades afetadas. Através das lentes de Sokal, o carvão deixa de ser apenas uma “pedra preta” e torna-se um símbolo da luta contínua contra as dinâmicas de poder que persistem na era pós-colonial.
