Tudo acontece por uma razão

Augusto Brázio

20 set – 03 nov 2024
Casa Rolão/Centésima Página

  • Exposições
  • Residências Artísticas
  • Fim-de-semana Inaugural
  • Braga

Residências Artísticas — Memórias da Cidade

Tudo acontece por uma razão

Uma das grandes maravilhas da fotografia reside no pré-conceito ilusório de que podemos controlar quase tudo o que lhe dá forma, desde a decisão do que, onde e quando fotografar até ao seu corpo concreto, nas suas infinitas variáveis. Essa armadilha foi crescendo imenso à medida que também fomos sendo capazes de subir já muitos degraus na sofisticação de aparatos técnicos, tecnológicos e computacionais preparados já não apenas para registar fotograficamente como para gerar imagens à la carte, superfícies visuais frankenstein mastigadas por motores de IA e não enquadráveis naquilo que (um pouco arqueologicamente, diga-se) temos como fotográfico. Certo é que é da implosão de muitas certezas de partida (uma maravilha) e do surgimento de imponderáveis (outra maravilha) que nascem tantas vezes obras maiores na fotografia (e em outras artes), que ora podem ser fruto de corridas atrás do “prejuízo”, ora tentativas de saborear ilusões doces, como a de controlar o incontrolável.

Quando vários dias de chuva seguidos deitaram por terra os planos de Augusto Brázio (Brinches, 1964) de captar de uma certa maneira a mais recente Semana Santa de Braga, o fotógrafo entrou em modo serendipitia — deambulou pela cidade e arredores, perscrutando, estudando, encontrando; passeando-se, surpreendendo-se, emocionando-se a um ponto capaz de “atrair a si acontecimentos favoráveis de maneira fortuita”, fazendo “boas descobertas por acaso”, que é como quem diz “ver para além do óbvio”.

Aquilo que à partida resultaria num olhar mais fechado para um dos momentos mais carismáticos da cidade — onde a paixão, a morte e a ressurreição de Jesus se celebra na sua maior explicitude e espectacularidade —, transformou-se num potente ensaio prospectivo de procura de identidade e que pode ser lido como mais um capítulo das Viagens na Minha Terra, não as de Almeida Garrett, mas as de Augusto Brázio, estudo de grande fôlego sobre paisagem humana e ocupação do território que o fotógrafo vem empreendendo há vários anos em Portugal, tendo passado já por cidades como Águeda, Covilhã ou Ponte de Sor.

Nunca saberemos como resultariam as fotografias à chuva da Semana Santa de 2024 de Brázio (temos um vislumbre dessa ambiência em dois trípticos de ajuntamentos de pessoas à espera das procissões). Mas ao olharmos para o resultado deste exercício de flânerie apetece dizer: ainda bem que choveu a cântaros; e que o fotógrafo foi atirado para fora de pé. Porque nesta Braga, dentro e fora do centro histórico, outros esplendores se levantaram; outras identidades bracarenses se revelaram, muito para além da sacrista; outros universos se juntaram (em sintonia, em desarmonia), do pagão ao religioso, da estatuária kitsch fofinha à representação da violência em telas sacras, onde dois castigadores martelam cavilhas na cabeça de um santo (?) enquanto um soldado desembainha a espada.

Nesta Braga de Brázio com cheiro a terra molhada parece que nem está frio, porque até os corpos dos manequins se despem, ainda que os outros também o façam, mas mais para competir em concursos de misses; tentar provocar solteiros embevecidos em noites de despedidas; desfilar pelo orgulho disto ou daquilo; ou apenas mostrar tatuagens em peles pouco curtidas pelo Sol, que ali chove muito e algum resguardo há-de ser preciso. Por exemplo, nas costas nuas de uma mulher de top branco e cabelo em rabo de cavalo gravaram-se palavras em inglês com a frase “tudo acontece por uma razão”, popular aforismo vindo das profundezas do determinismo de auto-ajuda, que diz que tem vendido muitos livros e da mesma família (talvez tio-avô) do nada acontece por acaso ou do assim quis o destino (primo em segundo grau).

Nesta Braga de muito fervor, as promessas de salvação eterna convivem com paixões, vícios ou “fraquezas” humanas, tudo coisas também conhecidas como “pecados” — os sete mais famosos estão quase todos nestas fotografias, a começar pela gula, muito bem representada pela churraria Goretti, onde se imagina um óleo de fritar sempre a ferver, mas mais para farturas do que para castigos, que a religião também serve para redimir. E o cardápio pecaminoso vai por ali fora, com a luxúria a ganhar aos outros todos e estampada, por exemplo, na grelha dianteira de um Rolls-Royce, na selfie da sósia da rainha ou nos falsos dólares com caras de Marilyn (sim, essa, a da saia plissada esvoaçante do filme O Pecado Mora ao Lado).

Choveu bastante nesta Semana Santa de Braga. E ainda bem — “tudo acontece por uma razão”?

Sérgio B. Gomes

Casa Rolão/Centésima Página
Av. Central 118, 4710-229 Braga

Horário:

Quarta-feira – sábado:
14:00–19:00

Domingo, segunda-feira e terça-feira:
Encerrado